Por: Lelo de Brito
Para Rodrigo Esperidião, el Conejo
Há coisas na vida que não se explicam. Como aceitar, senão como mistério, que minha vizinha, aos 102 anos de idade, tenha decidido criar um galo em seu pequeno quintal? Nessa idade, se ela plantasse um cipreste, eu teria entendido o recado. Mas que nada. Faz um mês que o galináceo está no pedaço, peito estufado, plumagem psicodélica, esporas afiadas. Vez em quando ele abre as asas, encolhe uma pata e, equilibrado sobre a outra, fecha os olhos e fica quieto. Da janela do segundo andar eu me pergunto, onde ele terá aprendido yoga?
Desde a chegada, como no samba de Clementina de Jesus, o galo cantou às quatro da manhã. Que se há de fazer, até aí tudo bem. É chato viver em um apartamento e todos os dias ser acordado por um galo desafinado. Tem algo de morar na floresta e ser acordado pela carreta furacão. Mesmo assim, vá lá, aqui também bate um coração. Sei que posso estar diante do último desejo de uma mulher centenária, testemunha ocular da decadência da nossa palavrosa espécie. Eis o mistério: amai e confiai.
Porém, tudo tem limite. De um tempo para cá, mistério irritante, o galo abre o fole às quatro da madrugada e canta até às sete e meia da manhã. Aí já é demais. Ninguém dorme na vizinhança. O galináceo histérico acorda o bebê do andar de cima, que acorda sua mãe, que ralha com o pai por ter um sono de pedra. Até seu Orlando do térreo, que é meio surdo, anda bolado, resmungando impropérios e mandingas. Nossa vizinhança está desassossegada, precisa de um herói. Mesmo que seja eu.
Estou decidido a matar o galo. Só não sei como fazê-lo. Andei pensando em vestir uma balaclava, saltar o muro antes das quatro da manhã e, à moda antiga, torcer-lhe o pescoço. Mas desisti. O bicho sabe yoga, vai que é um galo de rinha, oitavo dan, capaz de sangrar meu pescoço com uma esporada ninja.
Preciso de um plano infalível. Alguém aí faz ideia de como assassinar um galo discretamente e de modo indolor (para mim)? Aliás, preciso de um método discreto, indolor (para mim) e cruel. Afinal, é uma vingança.